Leitura: "O batismo da imaginação - A experiência da palavra criativa" | Secretariado Nacional da Pastoral da Cultura

Leitura: "O batismo da imaginação - A experiência da palavra criativa"

Secretariado Nacional da Pastoral da Cultura

«A imaginação é o léxico do Espírito Santo. Como lembrava A. Wilder, "se a imaginação falha, as doutrinas tornam-se um monte de ossos sem nexo, o testemunho e a proclamação tornam-se ocas, as doxologias e as litanias vazias, a consolação colapsa, a ética fica reduzida a um legalismo".
A imaginação dá encarnação à alma e dá espírito à matéria.»

É com estas palavras que José Tolentino Mendonça introduz o livro "O batismo da imaginação - A experiência da palavra criativa", do padre italiano Antonio Spadaro, que a Paulinas Editora lançou este mês.
Quem se coloca do lado da imaginação, defende que se trata de «uma pulsão criativa» que «faz olhar o real de um modo não formatado; é a matéria-prima da criação e da arte; é a poética interna do sujeito; é um sopro da liberdade de Deus».

Os que «desconfiam dela dizem que a imaginação não tem aderência ao real; é uma fantasia ilusória; é instável, imprevisível, confusa e inconsistente. Culturalmente, a imaginação inspira um certo receio. Pense-se, por exemplo, no ditado "a imaginação é a louca da casa", que previne da desestabilização que ela pode trazer.
Ou naquele que diz que "a imaginação é serva da razão", no sentido de que ela tem de estar submetida ao escrutínio vigilante da dimensão racional».

Todavia, «alguma coisa está a mudar», escreve Tolentino Mendonça: «a imaginação é uma condição necessária para contactar e conhecer o real, para agir sobre ele muito concretamente»; a imaginação «continua a ser um instrumento de audição mais profunda e mais autêntica daquilo que as nossas sociedades escondem de baixo do tapete»; e «a imaginação contribui para um conhecimento vital e inteiro da vida».

A nota de apresentação do volume sublinha que Antonio Spadaro provém do «mundo da literatura como autor de ensaios e de poesia, mas também como crítico literário», e nele «a literatura aparece como um recurso espiritual de uma riqueza inesgotável, porque é uma experiência capaz de qualificar e de transformar a forma de cada um se relacionar com a vida».

A palavra que se «dirige ao coração»
Antonio Spadaro
In "O batismo da imaginação"
Como se dá o encontro do homem com a vontade de Deus, sobre a sua pessoa em concreto?
Para lá de qualquer outra consideração, este encontro «tem sempre necessidade de abrirmos o ouvido a um silêncio».

O discurso teológico sobre a poesia pode ganhar sentido a partir desta atitude, que consiste em «estender o ouvido». É esta a convicção de um grande teólogo como Karl Rahner. O primeiro pressuposto para que o homem possa ouvir a voz do Evangelho consiste em ter os ouvidos abertos.

O Cristianismo tem, pois, necessidade de palavras que exercitem a capacidade de escuta. Para podermos ser cristãos importa exercitarmo-nos para que as palavras não deslizem sobre a superfície, não sufoquem na indiferença e se percam no meio das banalidades.
Se não se apreender esta necessidade de palavras «fortes», corre-se o risco de «ouvir apenas banalidades, milhares de coisas que tornam o espírito insípido e cansado».

Estas reflexões revelam-se úteis também para compreender o que é a palavra poética em si mesma.

Que é a palavra poética?
A palavra poética é um «pensamento encarnado». – A palavra humana, segundo Rahner, não é a expressão exterior de um pensamento que, mesmo sem palavra, poderia existir igualmente bem. A palavra é um «pensamento encarnado», e não a pura corporeidade do pensamento. É o elemento concreto em que se corporiza tudo o que experimentamos e pensamos. Assim como o homem concreto, na sua inteireza, é mais originário do que a sua alma e o seu corpo olhados como separados entre si, assim a palavra é algo de mais originário do que o pensamento. Por este motivo, as várias línguas não são intermutáveis,
«tal como não se pode dar uma alma espiritual a um corpo diferente do seu: de facto, não só esta alma se manifestaria de modo diferente neste novo corpo, mas ela própria se tornaria diferente ou transformaria o corpo, dentro do qual foi introduzida à força, no seu corpo.»
Assoma com força extrema a analogia entre palavra e homem, entendido como unidade de alma e corpo. A palavra abandona assim inteiramente o âmbito do domínio técnico. A primeira consequência é a extrema desconfiança perante a traduzibilidade da linguagem poética. Prossegue Rahner:
«Línguas diferentes podem compreender-se e também traduzir-se, tal como os homens, mesmo os mais diversos, podem viver em conjunto e nascer uns dos outros, mas nem por isso as línguas são equiparáveis a uma série de fachadas, de molduras externas por trás das quais se aninha pura e simplesmente o mesmo pensamento.»
Em suma, pode haver traduções, mas não substituições, como se a língua fosse apenas a moldura externa de um quadro. Rahner propõe, por isso, alguns exemplos. "La noche" de São João da Cruz não é a "Nacht" de Nietzsche ou de Novalis. A "ágape" da carta aos Coríntios não é apenas uma aplicação diferente do amor dos povos indo-europeus. Os exemplos podem multiplicar-se. Todos comunicariam a instância da absoluta unicidade da palavra poética.
A palavra poética é uma concha. – A diferença fundamental estabelecida por Rahner é entre palavras que são como «borboletas mortas, enfiadas nas vitrinas dos vocabulários», e palavras vivas, que existem desde sempre e que, «quase por milagre, renascem sem cessar». Estas últimas, mesmo mediante a indicação de uma só coisa,
«deixam transparecer a infinita gama da realidade, semelhantes a conchas dentro das quais ressoa o amplo mar da infinidade. São elas que nos iluminam, e não nós a elas. Exercem um poder sobre nós, porque são dons de Deus e não invenções humanas, embora tenham conseguido chegar até nós, graças à tradição dos homens.»
A concha ("Muschel") é o símbolo eficaz para indicar a infinidade presente na finitude da palavra. As palavras que são «borboletas mortas» são sem mistério, superficiais, suficientes para a mente, utilitárias ("Nutzworte"). As palavras-concha são obscuras, porque «evocam o mistério luminosíssimo das coisas». São assim as palavras da poesia, as palavras, na linguagem rahneriana, «primigénias» ou, melhor ainda, «originárias », da origem ("Urworte").
A palavra poética é originária. – Qual a diferença entre palavras originárias e palavras utilitárias? As primeiras são as palavras de Adão. Nelas «a coisa manifesta-se na palavra, tal como acontecia no primeiro dia da criação». É verdade que a realidade existe, mesmo se não é conhecida e afirmada (exceto por Deus, porém!), mas esta realidade recebe uma «intensidade essencial» quando arriba à palavra: é o que nos comunica Adão ao dar nome à criação. O poeta é aquele que, de modo denso e rico, continua a obra de Adão:
«O poeta não é um homem que diz com supérflua riqueza de imagens e com um fazer comprazido, por meio das rimas e com uma abundância de palavrecas sentimentais, aquilo que outros – os filósofos e os cientistas – disseram de modo mais claro, mais objetivo e mais compreensível.»
O risco sempre à espreita é o de ver na palavra poética apenas uma feliz ilustração do que se poderia dizer com maior brevidade e precisão, e permanecer arrimado à ordem do conceito. Trata-se aqui de indagar o poder próprio da palavra poética, no dizer aquilo que nenhum outro tipo de construção especulativa poderia chegar a expressar.
A palavra poética torna presente o que ela designa. – A palavra primigénia é
«a verdadeira e genuína representação da própria coisa. Não indica só algo, sem modificar em nada a relação entre o objeto e quem escuta, não fala apenas de uma relação existente entre o que ela designa e quem escuta, mas evoca a realidade de quem fala e torna-a presente.»
É, pois, claro, comenta Rahner, que, quando o poeta escre ve, numa poesia sua, a palavra «água», ela pode ter um significado muito diferente em relação àquilo que lhe atribui um químico, ao pensar na fórmula H2O. E ainda:
«A água que o ser humano vê, que o poeta canta e com que o cristão batiza, não pode, decerto, entender-se como um elogio poético da água do químico.»
Rahner, sem dúvida, não está a atacar o químico ou o seu ofício. Quer apenas explicitar que a palavra «água», para o químico, deve ter um conteúdo preciso e definido, ao passo que para o poeta não. Para este, as palavras permanecem «densas e, ao mesmo tempo, cintilantes»; em contrapartida, para o químico a palavra «água» é um instrumento, um utensílio que reduz a coisa representada à sua pura objetividade. As palavras poéticas tornam presente a água, «possuem uma simplicidade, que encerra em si cada mistério».
Compreendemos, pois, que as palavras primigénias não são apenas uma quantas e exatas palavras: são toda a linguagem da humanidade que consegue arrancar as coisas das suas trevas para as trazer à luz. São um dom e são acolhidas como tais. São palavras como «flores, noite, estrela e dia, raiz e fonte, vento e sorriso, rosa, sangue e terra, menino, fumo, palavra, beijo, raio, respiração, descanso». Em cada palavra primigénia «está implícito um fragmento da realidade, que misteriosamente nos abre uma frincha para a profundidade imperscrutável da verdadeira realidade».
A elas, escreve Rilke, vem somar-se uma infinita invasão:
«Estamos aqui, talvez, para dizer: casa,
ponte, nascente, porta, jarro, amendoeira, janela,
ou, quando muito, coluna, torre... mas para dizer, entendes,
oh, para dizer, sim, como as coisas no íntimo
nunca imaginaram ser...»
A palavra poética é muito precisa. – A justeza e o acerto intensificam a capacidade evocativa da palavra poética, e não a sua vaguidade. A precisão do pormenor, ao eliminar o simples avizinhamento e aproximação, impele o leitor a fazer uma experiência. Torna reais as emoções, evitando excessos de abstração e de sentimentalismo. Aliás, Maupassant afirmava que não há ferro que consiga trespassar o coração com mais força do que um ponto posto no lugar justo. O escritor americano Raymond Carver, depois de ter lido a frase de Maupassant, comentou:
«Foi justamente isso que eu quis fazer com os meus contos: alinhar as palavras justas, as imagens precisas, mas também a pontuação mais eficaz e correta, de modo que o leitor fosse arrastado para dentro e implicado na história, e não conseguisse afastar o olhar do texto a não ser que houvesse um incêndio em casa.»
Esta precisão leva a palavra a «extravasar»:
«Podemos falar de qualquer coisa, mas [as palavras] aludem sempre – sussurrando – a tudo. Quando se quer medir a sua circunferência, quando se tenta circunscrevê-las, perdemo-nos sempre na infinidade. São as filhas de Deus que trazem em si algo da luminosa obscuridade do seu Pai. Existe um conhecimento que está perante o mistério da essência na aparência, do todo na parte e da parte no todo. Este tipo de conhecimento fala sempre com palavras primigénias, que evocam o mistério. É sempre um conhecimento obscuro e não analisável como o é a própria realidade, que se apossa de nós por meio de tais palavras e que nos arrasta para as suas insondáveis profundezas.»
A palavra poética é a perfeição das coisas. – Todas as realidades almejam tal densidade, «todas aspiram a chegar à palavra», escreve Rahner. A palavra poética é a palavra das coisas, o seu «corpo espiritual em que podem alcançar a sua própria perfeição». No caso da Palavra de Deus, ela é a «corporeidade da sua graça». A palavra é, pois, «sacramento primordial da transcendência»: só ela, de resto, pode
«tornar presente Deus, como o Deus dos mistérios, aos homens que ainda não gozam da sua visão, de modo que esta presença não seja apenas uma presença na graça, mas uma verdadeira presença, aqui, para nós.»
O verdadeiro poeta é, pois, aquele que possui o dom e a vocação de libertar as palavras da esfera de um objetivismo castrador. Há, decerto, «poetastros ou medíocres versejadores ». Eles reconhecem-se pela sua incapacidade de conferir à palavra a respiração de que se falou. A palavra é intimamente capaz de libertar o que mantém na prisão todas as realidades não expressas, «o mutismo da sua tendência para Deus». Tudo tende para Deus de modo silencioso, e a palavra tem o poder de libertar as coisas de tal silêncio.

Esta transcrição omite as notas de rodapé.


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